Crónica
Porque morrem as flores?
Se a cada um de nós fosse dado o privilégio de fazer a Deus uma só pergunta, a minha só poderia ser esta: porque morrem as flores?
Uma neblina espessa e seca paira sobre a tua campa e eu fico aqui, entretendo-me com uma estrela, mesmo por cima de nós. É a mais luminosa de todas. Será a tua? Quero que seja. Acho que todas as pessoas com uma convicção, assim como tu, deviam ter uma estrela só para si.
Faleceste há um ano e ainda preservo feições na memória, como que de fotografia se tratasse, pronta a ser revelada. É que com o passar do tempo tenho sido cada vez mais tu; a tua força, a tua coragem, a admirável determinação; o teu sorriso com os cantos da boca que só tu sabias fazer e eu aprendi. E isso a trazer-me de volta aquele dia em que tudo mudou. Lembro-me como se fosse hoje. Comemorávamos o Natal na escola. O ambiente era de festa e o Grande Salão estava repleta de estudantes e professores. Declamavam-se versos e havia até quem cantasse. Mas o momento maior aconteceu quando subiste ao palco. Por alguns instantes pensei que ias recitar, mas seria muito mais do que isso. Observei-te estupefacto. Que irias tu dizer? Cumprimentaste a plateia e depois fitaste-me, com aquele olhar penetrante que só conheci em ti. Moça bonita, de dezanove anos apenas e de voz firme a encher a sala.
As tuas primeiras palavras caíram como um balde de água fria:
- Conheci um rapaz e apaixonamo-nos. É cá da escola…
Nisto, o alarido tomou conta da sala. Haviam sorrisos e gargalhadas por todos os lados. E, sem que isso te incomodasse, continuaste, sempre de olhos fincados nos meus:
- Quis ter relações comigo, mas não aceitei… Desculpa-me Pedro.
E agora? Todos sabiam que as tuas palavras eram dirigidas a mim. E, eu aí no canto, espantado e já indignado, sob os olhares e os assobios de toda a plateia. Tinha já resolvido ir-me embora, quando proferiste a última frase, deixando-me sem fôlego:
- Sou portadora do vírus da SIDA!... Somente quis proteger-te…
Aquilo foi como um raio. Os assobios e os sussurros terminaram. O resto foi um silêncio a pairar, insistente, e nós ali, impassíveis. Dos meus olhos, uma lágrima caiu, rasgou a minha face e desceu-me às entranhas da alma. Por instantes reconheci-te o sorriso com os cantos da boca, como só tu sabias fazer. Com um olhar vivo e uma firmeza tamanha de arrepiar, contaste-nos a tua história, a tua vida, a tua vitória. Só então vi-te mulher, não a moça dos dezanove anos, mas sim mulher e com uma mensagem de esperança para todos nós. Por isso acho que deveria haver uma estrela só para ti, que brilhe lá em cima, eternamente. Amei-te nesse dia como nunca fizera e sou feliz porque o foste. Hei-de vir cá todas as tardes à tua campa regozijar-me com um pouco da tua paz.
Se a cada um de nós fosse dado o privilégio de fazer a Deus uma só pergunta, a minha só poderia ser esta: porque morrem as flores? Talvez me respondesse, para que quando falecer-mos possamos encontrar lá em cima, um céu muito mais lindo.
Moisés Santos
Porque morrem as flores?
Se a cada um de nós fosse dado o privilégio de fazer a Deus uma só pergunta, a minha só poderia ser esta: porque morrem as flores?
Uma neblina espessa e seca paira sobre a tua campa e eu fico aqui, entretendo-me com uma estrela, mesmo por cima de nós. É a mais luminosa de todas. Será a tua? Quero que seja. Acho que todas as pessoas com uma convicção, assim como tu, deviam ter uma estrela só para si.
Faleceste há um ano e ainda preservo feições na memória, como que de fotografia se tratasse, pronta a ser revelada. É que com o passar do tempo tenho sido cada vez mais tu; a tua força, a tua coragem, a admirável determinação; o teu sorriso com os cantos da boca que só tu sabias fazer e eu aprendi. E isso a trazer-me de volta aquele dia em que tudo mudou. Lembro-me como se fosse hoje. Comemorávamos o Natal na escola. O ambiente era de festa e o Grande Salão estava repleta de estudantes e professores. Declamavam-se versos e havia até quem cantasse. Mas o momento maior aconteceu quando subiste ao palco. Por alguns instantes pensei que ias recitar, mas seria muito mais do que isso. Observei-te estupefacto. Que irias tu dizer? Cumprimentaste a plateia e depois fitaste-me, com aquele olhar penetrante que só conheci em ti. Moça bonita, de dezanove anos apenas e de voz firme a encher a sala.
As tuas primeiras palavras caíram como um balde de água fria:
- Conheci um rapaz e apaixonamo-nos. É cá da escola…
Nisto, o alarido tomou conta da sala. Haviam sorrisos e gargalhadas por todos os lados. E, sem que isso te incomodasse, continuaste, sempre de olhos fincados nos meus:
- Quis ter relações comigo, mas não aceitei… Desculpa-me Pedro.
E agora? Todos sabiam que as tuas palavras eram dirigidas a mim. E, eu aí no canto, espantado e já indignado, sob os olhares e os assobios de toda a plateia. Tinha já resolvido ir-me embora, quando proferiste a última frase, deixando-me sem fôlego:
- Sou portadora do vírus da SIDA!... Somente quis proteger-te…
Aquilo foi como um raio. Os assobios e os sussurros terminaram. O resto foi um silêncio a pairar, insistente, e nós ali, impassíveis. Dos meus olhos, uma lágrima caiu, rasgou a minha face e desceu-me às entranhas da alma. Por instantes reconheci-te o sorriso com os cantos da boca, como só tu sabias fazer. Com um olhar vivo e uma firmeza tamanha de arrepiar, contaste-nos a tua história, a tua vida, a tua vitória. Só então vi-te mulher, não a moça dos dezanove anos, mas sim mulher e com uma mensagem de esperança para todos nós. Por isso acho que deveria haver uma estrela só para ti, que brilhe lá em cima, eternamente. Amei-te nesse dia como nunca fizera e sou feliz porque o foste. Hei-de vir cá todas as tardes à tua campa regozijar-me com um pouco da tua paz.
Se a cada um de nós fosse dado o privilégio de fazer a Deus uma só pergunta, a minha só poderia ser esta: porque morrem as flores? Talvez me respondesse, para que quando falecer-mos possamos encontrar lá em cima, um céu muito mais lindo.
Moisés Santos